BUTLER-FLY: A METAMORFOSE NA OBRA
CASULOS DE SEDA DE INARA VIDAL

Ana Carolina Mondini

Crítica de arte, Doutora em Filosofia, Artista Plástica

mondiniann@hotmail.com

Em sua vídeo performance “Casulos de Seda”, a artista Inara Vidal apresenta a metáfora que ilustra o bicho-da-seda, através da imagem de um estranho Ser, e de seu respectivo casulo, por meio de bolas de sorvete arquitetais.

Toda a cena resume-se a essas duas imagens submersas em total escuridão, na qual aquele Ser, estranhamente bizarro, encontra-se praticamente inerte. O vazio em torno desse Ser, vivificado pelo estridente som de música metálica e uterina, cria ambiente propício para que ele desenvolva seu processo de transformação.

Esse lugar que remete ao útero pode significar também um ambiente totalmente desprovido de determinação cultural, caso o espectador explore toda a dimensão conceitual da performance. Inara Vidal, premeditadamente ou não, à maneira de Judith Butler, rompe com a tradição que sempre conferiu tratamento conceitual abstrato ao corpo, devolvendo a sua materialidade, ou melhor, a real existência dos corpos, mais precisamente, de seu próprio corpo.

Ao revestir e, portanto, confundir-se com o corpo da própria artista, o Ser, aparentemente acéfalo, ganha a realidade necessária para que se perceba a força e a dor que envolvem sua transformação. O tempo em que ele ali permanece estático é marcado pelo demorado e persistente tempo do derretimento do sorvete ou da desmaterialização de seu casulo. Conforme a câmera aproxima-se, visualizamos a humanidade advinda do pulsar pulmonar do corpo aflito em posição desfavorecida.

Sua estranheza e bizarrice não quer dizer pouca coisa, mas contribui para a formação da imagem da ideia de corpos abjetos butleriana:

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “não-vivíveis” e “inabitáveis” da vida social que, não obstante, são densamente povoadas por aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito, mas cujo viver sob o signo do “inabitável” é necessário para circunscrever o domínio do sujeito. 

Essa zona de inabitabilidade vai constituir o limite que circunscreve o domínio do sujeito; ela constituirá esse lugar de pavorosa identificação contra a qual – e em virtude da qual – o domínio do sujeito circunscrevera sua própria reivindicação por autonomia e vida. (BUTLER, 2019, p.18)

A imagem do Ser identifica justamente os corpos abjetos que não importam para a sociedade heteronormativa, que, desde sempre, impôs ao sexo o gênero por meio de determinações normativas históricas, culturais e artificiais na construção do binário masculino-feminino. Imposição externa que, portanto, impossibilita a criação de um sujeito realmente autônomo e, por conseguinte, existente. 

Como sugere Butler, uma vez que o sexo não se encontra necessariamente relacionado ao gênero, como se o gênero fosse um efeito do sexo, uma solução possível consiste justamente na desconstrução desse gênero, para que, a partir disso, construam-se efetivamente identidades reais.

A partir da aproximação da câmera, outro detalhe importante aparece e mostra a “feminina” e delicada beleza do Ser: sua pele é uma delicada renda de crochet feita demoradamente pelas mãos da própria artista, com fios cobres e brilhantes, com lindos botões que fecham e cicatrizam a uniforme superfície. A feminilidade, nesse aspecto, sugere que entre as pernas do Ser, não há apenas um, mas inúmeros órgãos sexuais. Resgata com imenso impacto a força sexual da vulva e em sua mais potente criação. A partir disso, não devemos pensar que a presença de resquícios tidos como “femininos” seriam artifícios poluidores do processo de transformação do Ser que envolveria a desconstrução do gênero?

No debate com Beauvoir, Butler indica os limites dessas análises de gênero que, segundo ela, “pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis de gênero na cultura” (p. 28). Partindo da emblemática afirmação “A gente não nasce mulher, torna-se mulher”, Butler aponta para o fato de que “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (p. 27). (RODRIGUES, 2005, p. 180)

Ou seja, não há qualquer relação real entre o órgão sexual, mais precisamente, a fêmea, e todo e qualquer aspecto do Ser que o caracterizaria como feminino. São as próprias determinações culturais, no entanto, que nos conduzem às analogias entre o feminino e a sexualidade do Ser, possibilitando, assim, a visualização de vulvas. Toda e qualquer alusão ao feminino, portanto, encontra-se determinado de antemão pelo próprio olhar do espectador, que, juntamente ao movimento da performance, tem a oportunidade de rediscutir consigo mesmo seus próprios parâmetros.

Assim sendo, sem qualquer resquício de mundo e cultura ao redor, em movimento totalmente concentrado em si mesmo, o Ser sofre a metamorfose. E seria nesse momento que se concretizaria a nítida transformação do ser em sujeito, não fosse o paradoxal fato de que ele se multiplica apenas em si mesmo. A vídeo performance encerra-se sem qualquer imagem da criação da óbvia e esperada imagem da borboleta, mas com a forte imagem de um Ser ainda mais bizarro porque com mais membros e mais vulvas. Devemos, assim, pensar que não houve a transformação do corpo abjeto em sujeito?

Nesse sentido, o sujeito é constituído por meio da força de exclusão e abjeção que produzem um exterior constitutivo para ele um exterior abjeto que e, afinal, “interior” ao sujeito como seu próprio repúdio fundacional (BUTLER, 2019, p.18)

A multiplicação dos membros pode ser compreendida como o processo de repetição e reiteração das lacunas, lugar no qual há a possibilidade de ressignificar as normas: colocar as normas do sexo em crise. E, assim, a transformação não ocorre mística e verticalmente, mas no processo de infusão a partir do qual se construirá a identidade.

[…] a construção não é nem um ato único, nem um processo causal iniciado por uma pessoa e que culmina em um conjunto de efeitos fixos. A construção não apenas toma lugar no tempo, mas é em si um processo temporal que opera pela reiteração de normas; no decurso dessa reiteração, o sexo é produzido e ao mesmo tempo desestabilizado. (BUTLER, 2019, p. 28-29)

Mesmo que a mutação não seja algo que ocorra em isolamento, mas de modo performativo e em ambiente social, a transformação do Ser abjeto em sujeito exige, momentaneamente, o retorno a si mesmo, a autorreflexão o contato consigo mesmo em corpo e alma.

Enfim, Casulos de Seda de Inara Vidal, além de propor imagens, perceptos e afectos para pensarmos e repensarmos em nossos lugares no mundo, mostra, – ilustrando conceitos advindos da filosofia de Butler, que, por sua vez, traz os conceitos para a vídeo performance, – a importância exclusiva da atividade filosófica e/ou artística no processo de transformarmo-nos em sujeitos, com olhos atentos para a infrutífera ineficácia de meras inversões discursivas. É preciso, urgentemente, a inversão de lógicas e estruturas formais!

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BUTLER, J.P. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. Tradução de Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: n-1 edições, Crocodilo, 2019.

RODRIGUES, Carla. Butler e a desconstrução do gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 13 [1]: 179-199, janeiro-abril/2005. Resenha sobre BUTLER, J.P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.