Diante do espelho:
os fragmentos de uma narrativa intangível

Diz um provérbio árabe – a humanidade se parece mais com sua época do que com seus pais

Ao pensar em alguns trabalhos de Inara Vidal me deparei com a seguinte pergunta: é possível tocar uma imagem? Como transmutar a sua indiferença física de representação em algo palpável, saído do espelho não mais como sombra ou reflexo de seu referente, mas sim tomando para si o efêmero da própria existência. Como tocar uma imagem que deixa de existir no plano da sua virtualidade eternamente copiável e passa a coexistir entre os sentidos dos nossos dedos como realidade? Talvez já tenhamos esse contato há algum tempo quem sabe desde sempre e só faltassem os meios para registrar esses momentos: não é raro passarmos por fotos que fazem retratos de pessoas interagindo com a frieza do bronze das estátuas urbanas. Na imagem que registra essa interação quanto mais perfeita e natural a interação, quanto mais viva e imersa na realidade de uma cena, mais o absurdo desse toque se revela.

Uma situação irônica que provoca gargalhadas em muitos, pois revela a insensatez calculada de tocar e se relacionar com uma imagem, no caso escultórica, através de outra imagem. Ao nos tornarmos imagem junto com outra imagem ganhamos a possibilidade de enganar os sentidos e assim produzir ironia. Essa consciência e esse desejo de tocar e se relacionar com imagens fisicamente corresponde a um momento tecnológico em que essa possibilidade se torna cada vez mais viável e mesmo corrente em nossa linguagem cotidiana. Essa situação me leva a uma segunda pergunta, relacionada à maneira em que esse toque ocorre. Estamos acostumados a sermos tocados pelas imagens, elas criam sentidos e nos tocam com diversas variantes, mas numa frequência que não está em nossos plenos domínios de expectador. Mas e quando nós tocamos uma imagem e fazemos dela pura e simplesmente o nosso próprio reflexo, como nela tocamos? Qual seria o limite desse espelho? Ou será que seu limite seria apenas o físico, tudo suportando?

Nesse sentido me deparo pensando em alguns trabalhos de Inara Vidal novamente. O toque da artista em algumas peças de cerâmica, por exemplo, parecem gerar também um desejo de toque por parte do espectador. As peças que formam a série Puella (2009), por exemplo, me pareciam mais coração do que vulvas em um primeiro momento. Mas ao tocá-las a minha construção se desfez e elas não puderam mais ser outra coisa que não uma junção misteriosa das duas coisas. Foi o toque na peça, nessa que seria para mim apenas a imagem de um coração, que modificou a minha percepção. Sem o toque a imagem em sua integridade tal como produzida pela artista ainda não existia para mim. Esse movimento do trabalho gerado em mim, do sentimento quase pueril diante de um coração à sexualidade que se revela em instantes pelo toque das mãos, se conecta perfeitamente ao seu batismo como puella (mulher em formação em latim). Uma formação que também se constrói na sua revelação física. Uma produção não mais para os olhos, mas sim uma máquina desejante questionando o nosso tocar e consequentemente a moral da nossa alteridade. Como Guatari e Deleuze, com pedras na boca também poderíamos citar Artaud:

Debaixo da pele o corpo é uma fábrica a ferver, e por fora,
o doente brilha,
reluz, com todos os poros, estilhaçados.(1)

Nosso corpo possui um funcionamento vital complexo além da incessante produção de desejos. São milhares de reações biológicas que acontecem distantes de nossa consciência. Podemos passar anos estudando seu funcionamento sem compreender os detalhes da vastidão de seus fenômenos que acontecem simultaneamente. A história da criação de aparelhos que nos permitem captar imagens dos sistemas, órgãos, reações químicas, estruturas celulares e moleculares é antiga, desde há muito se procura os mecanismos que permitirão ver os desvios do funcionamento do nosso corpo com a intenção de corrigi-los. Mas a efetividade dessas imagens captadas é recente, não passa de um século, e tenta se desenvolver a passos largos ao lado dos maiores avanços da tecnologia. A medicina continua a se aperfeiçoar na busca por imagens que irão nos trazer a visualidade do nosso corpo e seus erros de funcionamento, ampliando a possibilidade de falar sobre nós mesmos com precisão científica.

Para isso, entretanto, foi preciso fragmentar toda uma integridade funcional em mínimos componentes observáveis. As imagens médicas de um corpo não possuem a forma de corpo. São fragmentos e reunião infinita de dados e suas variantes para identificar se há algum funcionamento estranho ao próprio corpo do paciente.

Um corpo estranho também é um corpo estranho aos nossos olhos. A Coleção de rebarbas (2016-) de Inara funciona como um anamorfismo tátil que provoca o mesmo desejo de segurá-los com as mãos, assim como suas Puellas, mas estão isolados por caixas de acrílico. Diante deles nos resta uma lupa disponibilizada pela artista, um instrumento que integra o trabalho como única ferramenta de alteridade para os sentidos. A artista já vinha procurando esse estranhamento do se desfazer corporal através de alguma ferramenta tecnológica desde Skin e Liquify (ambos de 2009), onde retratos em que se evidenciam a pele e outros órgãos se dissolvem e se fundem numa redoma indiscernível de cores. Na sua Coleção de rebarbas, entretanto, o movimento é oposto. Somos nós quem tentamos reconstruir esse corpo amorfo através de seus detalhes proporcionados pela lupa. Como fetos abortados de seu processo de formação observamos detalhes de algo que nunca chegará a se completar. Mas são colecionáveis. E talvez esse seja seu expurgo. A possibilidade científica e poética contida num acúmulo de fracassos.

Assim como nas ciências médicas, Inara Vidal procura a construção de aparelhos de produzir imagens táteis de corpos. Imagens que indicam um caminho para o toque ou para alguma incisão. Imagens que carregam alguma realidade mas que na verdade se assumem como cenas, frutos de seus próprios aparelhos, numa equivalência das tecnologias que também utilizamos para produzir cenas e narrativas pessoais, compartilhadas a esmo por redes sociais. São narrativas, entretanto, que não condizem com realidades integrais, mas sim fragmentos que inventam uma narrativa a partir dos nossos desejos.

Nesse sentido, a selfie, enquanto autorretrato ficcional, se torna então intangível, uma performance social e um corpo dissimulado que performa sua dissimulação. Uma modalidade de fotografia em que nos perdemos para que o outro tente nos encontrar. É um pedido. Queremos ser achados, vistos, considerados em meio a todo volume de visualidade que já nos consome. Alguns artistas passaram a explorar esse terreno buscando revelar o quanto naturalizamos essa realidade intangível oferecida por grandes meios de mídia, como Cindy Sherman, que tem desenvolvido um trabalho específico para a plataforma do seu Instagram, inventando personagens amorfos em situações críticas ou irreais, mas não oferece qualquer declaração a respeito.

Essa performance diante do aparelho, a produção de selfies como uma dança de amor com a câmera que revela o melhor e mais desejável reflexo de si nos parâmetros atuais do desejável ignora qualquer outra posição que gere estranhamento. Normalmente existe para cada um seu melhor ângulo para uma foto ou selfie, e em detrimento dessa construção todas as outras possibilidades são descartadas. Em Uns e outros – aparelho para experiência de si mesmo (2013) Inara Vidal performa diante de seu próprio aparelho. Encena uma dança que revela uma multiplicidade de eus possíveis diante da câmera e todos eles coexistem em diversas superfícies de espelhos. Ali não existe melhor ângulo, todos buscam se reconstruir como abertura de contatos consigo mesmo, uma junção da nossa pele já fragmentada pelos outros aparelhos que a rodeiam fora de sua máquina de gerar a si mesma.

Os trabalhos da Inara nos mostram a nos mesmos dilacerados pelos aparelhos de visualidade que cria. São imagens fractais, hologramas, um visível que só existe na virtualidade dos seus aparelhos. Diante deles somos tomados pela estranheza do nosso corpo não mais supostamente íntegro, ou como estamos acostumados a ver sua integridade, mas sim as deformações das imagens de nós mesmos. Eles rompem com o reflexo procurado num espelho, encontramos outro que não nós, mesmo que ainda sejamos nós, procuramos nos reconhecer mas não nos encontramos – distante do selfie, não são imagens que nós produzimos –, algo, um aparelho virtual é quem cria essas imagens. Inara revela o dispositivo, e deixa as imagens no seu próprio campo do estranhamento enquanto máquinas desejantes, só corpo, sem órgãos, dilacerados pela revelação da falsa naturalidade do contemporâneo.

Arthur do Carmo

1 ARTAUD apud DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O anti-édipo – capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes Varela e de Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Edições Assírio & Alvim, [2004], p.9.

In front of the mirror:
the fragments of a narrative intangible

Says an Arab proverb – humanity looks more like its time than with her parents

When I think of some Inara Vidal’s works I came across the following question: is it possible to touch an image? How to transmute your indifference to physical representation in something tangible out of the mirror more like shadow or reflection of your relative, but taking the ephemeral of the own existence. How to play an image that no longer exists in your virtuality eternally copyable to coexist between the senses of our fingers as reality? Maybe we have this contact for some time who knows since always and only lacked the means to register these moments: it is not uncommon to spend for pictures that are portraits of people interacting with the coldness of the bronze of the statues. The image that registers this interaction the more perfect and natural interaction, the more alive and immersed in the reality of a scene, the more absurd that touch reveals itself.

An ironic situation that causes laughter in many, because it reveals the folly of playing and calculated to relate to an image, in this case, through another sculptural image. To become image along with other image won the opportunity to fool the senses, and thus produce irony. This awareness and the desire to play and relate to physically images corresponds to a moment that technological possibility becomes increasingly viable and even into our everyday language. This situation leads me to a second question related to the manner in which this occurs. We are used to being touched by the images, they create senses and touch us with several variants, but at a frequency that is not in our full spectator areas. But when we play an image and make her quite simply our own reflection, as it played? What would be the limit of this mirror? Or does your limit would be just the physical, all holding up?

In this sense I encounter thinking in some works of Inara Vidal again. The touch of the artist in a few pieces of pottery, for example, seem to generate also a touch desire on the part of the Viewer. The pieces that form the series Puella (—) for example, seemed more heart than vulvas at first. But to play them to my construction fell apart and they could not be anything but a mysterious junction of two things. Was the touch in the play, that it would be for me the image of a heart that has changed my perception. Without touching the image in your integrity as produced by the artist didn’t exist yet for me. This movement generated work in me, the almost childlike feeling before a heart to sexuality that reveals itself in an instant by the touch of the hands, connects perfectly to your baptism as puella (woman in Latin). A formation that also builds on your physical revelation. No more production, but rather a desiring machine questioning our play and consequently the moral of our otherness. As Deleuze and Guatari, with rocks in the mouth could also cite Artaud:

Under the skin the body is a factory to boil,
and out,
the sick shines,
Glitters,
with every pore,
shattered.

Our body has a vital function in addition to the incessant production complex of wishes. There are thousands of biological reactions that take place far from our consciousness. We could spend years studying your operation without understanding the details of the vastness of its phenomena that happen simultaneously. The story of the creation of devices that allow us to capture images of the organs systems, chemical reactions, cellular and molecular structures is ancient, since it has long been looking for the mechanisms that will allow us to view the variances of the functioning of our body with the intention to correct them. But the effectiveness of these images is no more than a century, and tries to develop apace alongside the greatest advances of technology. The medicine continues to improve in the search for images that will bring us the Visuality of our body and its malfunctions, increasing the possibility of talking about ourselves with scientific precision.

For this, however, it was necessary to break a whole functional integrity in minimal observable components. Medical images of a body does not have the form of body. Are fragments and infinite data gathering and its variants to identify whether there are any odd operation to the patient’s body.

A foreign body is also a foreign body to our eyes. The collection of burrs (2016) to Inara works as a tactile are causing the same desire to hold them with your hands, as well as their Puellas, but are isolated by acrylic boxes. Before them we left with a magnifying glass provided by the artist, an instrument that integrates the work as the only tool of otherness for the senses. The artist was already looking for this strangeness of body disposal through any technology tool from Skin and Liquify (both 2009), where portraits in which show the skin and other organs dissolve and merge in a bubble of indiscernible colors. In your collection of burrs, however, the movement is opposite. We tried to rebuild this amorphous body through its details provided by the magnifying glass. How fetuses of your training process we observe details of something that will never make it to complete. But they are collectibles. And maybe that’s your purge. The scientific and poetic possibilities contained in a accumulation of failures.

As well as in medical sciences, Inara Vidal seeks the construction of producing tactile images of bodies. Images that indicate a path to the touch or for any incision. Images that carry some reality but that actually take as scenes, fruits of their own devices, in a equivalence of technologies which we also use to produce scenes and personal narratives, shared at random by social networks. Are narratives, however, that don’t support integral realities, but fragments that make up a narrative from our desires.

In this sense, the selfie, while fictional self-portrait, becomes so intangible, social performance and a concealed body that performs your deception. A photo mode when we lost to the other try to meet. It’s a request. We want to be found, seen, considered amid all of Visuality volume that consumes us. Some artists began to explore this land seeking reveal how naturalizamos that intangible reality offered by major media means, like Cindy Sherman, who has developed a specific job for your platform Instagram, making amorphous characters in critical situations or unreal, but does not offer any statement about it.

This performance in front of the unit, the production of selfies as a dance of love to the camera that reveals the best and most desirable reflection of themselves in the current parameters of the desirable ignores any other position that manages strangeness. Usually exists for each one your best angle for a picture or selfie, and to the detriment of that building all other possibilities are discarded. In each other-device to experience yourself (2013) Inara Vidal performa in front of your own appliance. Stage one dance that reveals a multitude of possible selves on camera and they all coexiestem on a variety of surfaces. There does not exist a better angle, all seek to rebuild as opening contacts himself, a portmanteau of our skin already fragmented by other devices that surround it outside of your machine to generate itself.  

Inara’s work show us ourselves torn by Visuality apparatus that creates. Are fractal images, holograms, a visible that exists only in virtuality of their devices. Before them are taken by the strangeness of our body more supposedly healthy, or as we are used to seeing your integrity, but the deformed images of ourselves. They break with the reflection in a mirror, sought to find other than us, even us, we recognize but not met – far from the selfie, are not images that we produce – a virtual appliance is who creates these images. Inara reveals the device, and leave the images in your own field of strangeness as desejantes machines, body without organs, torn by the revelation of the naturalness of the contemporary.

Arthur do Carmo